20 dezembro 2009
O Milionésimo
I.
Contemplai um miriápode, mas aquele animal fantástico de mil patas, mil cascos, com tantas garras quanto permitem as extremidades locomotoras.
Do mesmo modo a figura de mil lados que um dia será presente no desdobrar em sólido pelo infra-espaço na correspondente cifra de planos.
Onde foi, aliás, gerada a Famosa Machina, a estrepitosa ideia de um vago penar erróneo e sem-sentido.
II.
As teias do tempo onde s'escoa a clepsidra vã e assim uma vida que mal toca, espelha outras. Diremos d'escol quem nos lê embora querendo chegar a todos – e tentando chegar aos cumes d'humildade em anulação – e de todos colher o hausto de um belo sorriso d'aquiescência: “animai a dolente vontade; aquilo que aí tens é precioso e assim ficará por tantos séculos, também dez, que mal te parcerá o olvido.”
E é por isso que tanta fúria em derrisão há nestas crónicas, mirabólicas, multiplicando-se no labor de si, auto-pulsando-se ao seu ritmo próprio que é o dos dias, e noites insones quantas vezes de pesadelo porque no mundo mais pululam tantas outras palavras que se erguem como uma muralha de silêncio ou ruído d'inanidades.
Mas seja, e isso é muito ou tão-só o bastante.
III.
Toda a imagem é divina porque toda a alegria é passageira e, assim, há que transfixar o momento na perene contemplação.
Isso é mor de deuses e esses estão em tudo, no mais breve sonido, na víscera das coisas, aquelas que são e, do mesmo modo, na fantástica imaginária da cornucópia produtiva, quando gera aquilo que, de puro e perfeito, se abstém da consabida corrupção.
Como calar, então, essa quanta maravilha?
Como estancar o grito imóvel no seu eterno tom?
IV.
A perene circunstância de se ser e saber e viver enquanto pela morte s'espera é um exaurir só do pouco tempo que ao tempo ousamos roubar.
Isso, meus caros, já vós melhor o sabeis - mas, que querem? - se esta queda para a ressabida redundância é pecha d'artista que, temo, não seduz mais do que na vã e escassa citação, conforme o momento, ladina e feliz ou carregada dos mofos e próprios verdetes das épocas passadas, as tais que melhor restavam enterradas e esquecidas porque de mortal temos muito e de sobra sem ser preciso estar instante-constante a invocar os dizeres de quanto defunto jamais pegou em pena.
V.
Nesta crónica quero dizer tudo e porque as determinações do mundo, sós, não bastam, s'apela ao êxtase da suprasensível fantasia. Mirabilia, portanto, na sua codificação de teratologias, de voos outros, além da matéria.
Pois as fantasmáticas figuras são metáfora da urdidura do orbe, da sua quotidiana faina que, aliás, se não ousa desfiar.
E convém relembrar que o mais insondável elenco, mirífico e incrível é esse conjunto de vinte e poucos sons os quais, mais diversos em sua combinação que a própria forma de Proteus, compõem a enunciação de toda a criatura viva e respirante ou, tão-só, pensada em ideal.
Por isso um texto inaugural só pode ser a crónica da crónica do porvir.
Defina-se então a paleta de cores irreais para que nada fique, virtualmente, de fora excepto o por-dentro das coisas, já que se tenta a duvidosa edificação de uma ciência vaga, de nula, no que há a flutuar na orla do sentido. Entronizemos o discurso por demais ocioso naquilo que tem de alor pelo belo recorte e o bom efeito da sombra falaz com esteio de nada e, se ambição acaso houver, no polícromo dizer do rio da vida ou do Letes da memória.
12:30

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