31 outubro 2006
(s/ título)
Não sei quem sou, essa é que é essa. Tenho uma vaga, difusa, ideia de quem fui e fui muitas coisas ou, talvez, coisa nenhuma, ou, então, algumas coisas e não outras, umas que gostaria ter sido e não fui, sou ou serei, por defeito de fabrico ou kármica destemperança ou ainda -porque não? - por dolência indolente & insolente para com as coisas do porvir, outras que fui, e que bem poderia ter dispensado, não fora essa a ontológica ventura e se, claro está, tivesse tido a falaz oportunidade de tal privilégio me não ter calhado em sorte. O certo é que pouco ou nada vos posso adiantar pois, quem sou, não sei. Entendamo-nos. Sei o meu nome, onde moro e habito, sei até quantos sóis e luas passaram deste que esta carcomida carcaça viu a luz ou a sombra, pois acho - aqui com meus botões - que a luz, brilhante e clara e pura e límpida e azul ou branca, nunca cheguei exactamente a ver, ou porque permaneci num escuro tugúrio, umbrado de mofos e verdetes, ou porque sem olhos nasci, ou, se olhos tenho, os não aprendi, com exacta e própria ciência, a usar ou ainda, como se as dúbias dúvidas não me acossassem o bastante, seja falho, também, na arte de ver. Sei, igualmente, o nome de meus pais e de toda a longa progenitura que me engendrou e sei como hei de morrer. Ora, meus caros, detenhamo-nos neste ponto, acaso vos tenha passado despercebido o fundo comentário que, en passant e como quem não quer a coisa, deixei escapar, vertendo-o silabicamente num deix'andar de resvalar pelo palato em íntimas ressonância e, não digo que não, ressumando a espúrias e escusas transumâncias: sei com preciso e precioso rigor como hei-de morrer e quando e porquê e em que ominosas ou exaltantes circunstâncias, o que, vistas bem as coisas, é o mesmo que dizer que sei, no derradeiro e final momento d'estertor, qual o meu lugar na economia do urbe e, mesmo - vejam bem - do orbe. Mas, tal informação, notem inda os amigos, que para tantos seria d'inestimável valia, a mim não me serve de nada porque não sei quem sou, fui ou serei, à excepção da cônscia e fatal consciência do fim. Como às arrecuas ando, de tombos em tombos, procurando por mim e, sabeis já, que comigo não topo, qualquer que seja o afanado afinco com que procure. Parece, aliás, que nesta triste vida mais não fiz do que me buscar, por esquinas e vielas, perguntando a gentes e bichos, Conhecem fulano, assim e assado, nem alto nem baixo, antes pelo contrário, nem entroncado nem esquizóide e, muito menos, de dolicocéfala figura? Pois olhem que sou eu, e se vós o conheceis e me puderdes dar alguma informação sobre o arredio eu de mim, até pago bem, pois muito guardei para quando chegasse o momento, sim, este mesmo, e em chegando o desejado, não fosse impedimento impediente o simples e banal facto venal de não ter soldipilim para remir essa desgraçada notícia de minha pessoa, que teima em iludir o seu natural proprietário, que, no entanto, por casos e acasos do destino, se vê obrigado a descer à ignomínia de largar umas coroas por algo que, desde sempre, devia ter permanecido em sua posse, uso e fruição, como acontece a qualquer mortal que nasce e cresce e aos poucos vai sabendo quem é, e foi, e, embora não saiba como há-de morrer, vive contente e feliz e, em casos raros, raríssimos, com um certo júbilo d'existir, porquanto tem à sua frente um destino, decerto incerto, mas firme &'scorado numa doce, e digo doce e leda, identidade, coisa tão simples que parece só a mim me iludir no teimoso, e digo teimoso e tenaz, logro da sua ilusão. Saber quem sou, por tanto, e digo por e digo tanto, pois tanto parece, com clara & distincta perceptio, que muito hei-de penar e de sofrer e de buscar e de perder e de viver e de chorar e de fugir e de chegar e de dizer e de ficar, até - e, queridos e argutos sois vós, que já estais entendendo minha réstia d'esperança - chegar a morte desgrenhada e façanhuda como ela só, portando pela mão as amigas desoladoras, ou, como se diz e por aí se vai ouvindo, a gadanha acerada que a todos ceifa com brutal excisão do sopro vital, ou ainda, outros e variados aparatos de terminar o que forçoso é que termine, e tenha a gentil erada senhora, por muito cruel e cruenta que vos possa parecer, a fineza de bichanar ao meu ávido ouvido, Tu és isto, agora que teu consabido fim chegou, e foste aquilo, na tua larga mas cansada existência e - suprema dádiva da generosa mater que devora os próprios filhos - irás para este lugar, reservado aos puros e aos bons ou para aqueloutro, reservado aos réprobos, ou, não vais para lugar algum mas serás transconsubstanciado em outra criatura que terá a natural e bonançosa certeza de saber quem é, do mesmo passo que, desconhecendo, para sua grande e maior serenidade, a adveniência do último suspiro, poderá encarar o futuro, com aprazível calma ou intranquila bravata, mas sabendo, de um modo que não ouso descrever, que foi, em fim e a final, reposta a certa e correcta ordem das coisas.
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27 outubro 2006
q.e.d.
Andam os anjos à nossa procura (e tal consta em todos os santos lugares), pobre e honesta pessoa que, por suave placidez, atitude arredia ao conflito, passa, em sóis ou em sombra, despercebida ao mais arguto; e, mesmo o luminoso mensageiro se vê em tormentosos trabalhos para lograr atingir, lobrigando na distância esta indistinta figura, o exacto paradeiro do vosso devotado criado. Assim, será - quod erat demonstrandum - demanda de todas a mais insana, embora de férrea exigência para os portadores do selo, ou não fora a ordem de busca promanada de alta potestade, aquela preclara que manda e comanda as coisas do mundo e dos céus, perfeita em sua perfeição, fonte de toda a luz, dimanando constante, qual pura fonte de límpida extracção, o vero entendimento que agracia as sãs criaturas e pune, com o acerado aguilhão da culpa, os réprobos e os idólatras que, em era-má, tiveram o mui humano desdém de voltar as costas à palavra e ao signo e sinal da recta razão, que quando o tempo próprio, propício e final chegar, conduzirá os justos de entre os justos à doce franquia dos etéreos portões.
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24 outubro 2006
Desculpação
Perdoa-me caro leitor porque me tenho esquecido de ti. Até t'atuo, pois sei que és único, singular e - diriam alguns - intransmissível: "meu leitor", que riqueza infinda t'encontrar perdido em minhas incipientes letras.
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01 outubro 2006
O Rei Hélios
Este texto é dedicado, com imenso amor, a todos os autocratas que, na sua
estultícia, ofertam às gentes do orbe, em sagrada missão, o exemplar exemplo de relembrar,
com perene acuidade, quão frágil é nossa condição d'humanas creaturas


Era uma vez um rei d'imensa majestade, incumbido das mais altas tarefas de conduzir a vida de seu povo. Perfeito em sua perfeição, poderoso em sua potestade, rebrilhava aos olhos de todos porquanto se fosse notado qualquer vislumbre de palidez do olhar, na formosa contemplação da sua luminosa figura, o ímpio cidadão perdia o direito a fazer uso de sua natural visão, em forma de justa cauterização dos imerecidos globos oculares. O mesmo, aliás, em boa justiça devia ser aplicado à fala e à língua e, do mesmo modo, ao punho que escreve e descreve a dúvida. E, se o incauto escriba ambidextro fosse, decepadas ambas as impuras mãos. No mais, tudo fluía, como pacato ribeiro, a não ser pela peculiar circunstância de que tanta real luminescência implicar um teratológico inchamento do já dilatado abdómen da majestade. Acesas foram as discussões na corte. Para os físicos seriam gases, para os místicos seria a consubstanciação de uma santidade tão pura e intensa que exigiria a necessária deformação do amado reizinho, pois a forma humana era limitada para conter tal beatude. Para os poetas, contudo, seria simples consequência d'albergar um pequeno sol d'entendimento alimentado pelas musas. O certo é que o rei não parou de inchar, em crescendo, até ao dia em que, flutuando como balão d'arminho adornado, rebentou, eviscerado e repartido por todas as superfícies desta sala que, até hoje, permanecem tintas d'anil do seu sangue.
E c'alegria, querido leitor, com tua arguta percepção, que não foi sina de divina providência nem sacra possessão, mas empáfia exacerbada em combustível explosão.
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Nome: João Pereira de Matos Cidade: Lisboa
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