Desabafo
Escrever tem de ser a prioridade porque é o que mais m'apraz. Mesmo que seja escrita-errante, a esmo, perdida de si e das suas concretas aplicações, digamos, práticas, nunca é perder tempo. Resta a esp'rança de uma vindicação da vida, o solver de tantas antinomias, contradições vividas na carne. Talvez promessa de futuro. São muitos os projectos mas sempre vagos, perdidas oportunidades no rumor do mundo. Poucos me lêem. Esse grandioso sonho triunfal permanece miragem no que tem d'irrealizável e impossível. Na verdade, a escrita, no que tem de raciocínio-em-acto é uma necessidade. Poder exercer a minha ciência vaga, figurino exterior e oco de um sistema mas sem os constrangimentos provindos da sujeição e análise de um corpus, das exigências hermenêuticas de textos canónicos, atirando para trás das costas todas as bibliografias excepto as imaginadas. O doce torpor de um canto em palavras, erguidas em frágil arquitectura, já se sabe, de cousa nenhuma. Assim, enquanto escrevo, sonho-me feliz, conhecendo-me em vacuidade finjo a plenitude dessa catedral impossível por além das minhas forças, engenho que não tenho ou talvez não queira querer, rio incessante em direcção à foz de uma monótona tristeza.
Toda minha mas não incomum a todos que não sabem viver.
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Nota
O sortilégio de um declinar reflexivo: sonhar-se, sentir-se, pensar-se. Em volutas espiraladas ou retorcendo-se sobre si: sonhar sonhar-se, sentir sentir-se, pensar pensar-se. De outro modo, ao invés, negar por um quase oxímoro: não sonhar sonhar-se, não sentir sentir-se, não pensar pensar-se. Ainda uma estocástica recombinação dos elementos: sonhar sentir-se, não pensar sonhar-se, sentir não sonhar-se. Porquê? Pois se verte em palavra o processo próprio da metacogniscência, reflexo especular de um recuo filosofante do eu perante si próprio.
Assim uma escrita toda brilho, d'iluminar os recessos do acontecer raciocinante do ego em fluir de um mundo interno.
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Sub Specie Aeternitatis (excerto)
Tivera a prosa d'ouro, o manejo da simplicidade profunda, aquela que diz por palavras simples e boas o conjunto da experiência, a circunferência do mundo rodando sobre seu eixo. Quando se é ambicioso, na procura da perfeição, do belo, poético mas exacto, corre-se o tremendo risco de recair no obscuro, em um labirinto d'enganos - errância própria do que é dito - de onde nunca se sai. E o bom leitor, s'entende, quer outra cousa: prosa mais limpa.
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