Cinco Poemas do Livro Lacrimae Rerum de João Pereira de Matos com Tradução* para o Italiano de Frabrizio Boscaglia
Sia la ventura di uno stimolo qualunque. Lo stato vegetativo della vita procrastinata non è bello. Ché, se il tedio fosse bello, la rinuncia un prodigio, allora il paradiso sarebbe il mondo. La paura una ventura, quel che fugge il vero tesoro e l’Inverno l’allegria di un rinnovamento. [Haja a ventura / De um estímulo / Qualquer. // O estado vegetativo / Da vida adiada / Não é belo. // Pois, se o tédio / Fosse belo, / A renúncia / Um prodígio, / Então o paraíso / Seria o mundo. / O medo / Uma ventura, / O que escapa / O verdadeiro tesouro / E o Inverno / A alegria / De uma renovação.] *** Quanto feroce è il tempo? Quanto funerea è la vita? Vorrei strappare i miasmi della paura, raggiungere mille orgasmi di Sole. [Quão feroz / É o tempo? / Quão funérea / É a vida? // Quisera rasgar / Os miasmas do / medo, / Alcançar / Mil orgasmos / de sol.] *** Ascoltate: la vera radice della penuria è quel che si ruba alla coscienza. [Escutai: / A vera raiz / Da penúria / É aquilo que / Se furta / À consciência.] *** Che non vi sia passaggio delle ore. Il tempo è ristagno, o ruota e dismisura. Il momento fugge, l’occaso giunge. Un tempo vi era luce, e mare e cielo e orizzonte. [Não haja passagem / Das horas. / O tempo é estanque, / Ou roda e desmesura. // O momento foge, / O ocaso chega. / Outrora havia luz / E mar e céu e horizonte.] *** L’urgenza sgorga dal volere il mondo. Forse per questo, certe cose dello spirito, sono nel pieno indugio. [A urgência brota / De querer / O mundo. / Talvez por isso, / Certas coisas do / espírito, / Sejam / Na plena / demora.] *Occaso: voci poetiche dal Portogallo é uma rubrica do blog bottega portosepolto.it, com a curadoria de Fabrizio Boscaglia.
Devaneios do Fim d’Estio
Saiu um conjunto de contos intitulado «Devaneios do Fim d’Estio» na revista TriploV (Triplov.com).
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Aqui fica o primeiro conto: Estátuas de Sal Na orla do Mar, os pescadores esperam à porta das casas. O que esperam os pescadores? O problema é, como sempre, a ausência de dinheiro. Nas Casas não há técnicos. Pormenores: Algumas armações foram recuperadas para comercializar peixe à custa de um forte investimento, mas há mais de uma década que se encontram abandonadas. Não há combustível e o cão está intoxicado pela inalação das lágrimas. O interesse no mercado não é aumentar a facturação, antes pelo contrário, estagnou, cai a pique, inquinado, mais podre que o peixe podre, deixado abandonado ao Sol, para os ratos se, mesmo eles, se dignassem a comê-lo. Na Rota 33 há algumas pessoas a morrer à fome e por falta de higiene. O salitre come-lhes as carnes. Foi-lhes aos ossos. Nas Casas faltam técnicos e, como a previsão é de aguaceiros, há problemas de segurança. Todos os dias faltam os salários. A pobreza é extrema. Em Albufeira, vinte crianças perderam a viagem para o Interior. Inventam novos frutos-tóxicos, com o tempo que lhes sobra, com a falta de transporte, de ocupação e de oportunidades. O que farão com a profusão de frutos-tóxicos que se amontoam à porta de casa? O cão, já há muito, pereceu, envenenado de lágrimas, de fruta-tóxica, cansado da espera dos pescadores, que permanecem imóveis, ainda, à porta das suas portas, estátuas de sal, tisnados, inertes, pacientes, furtivos. Que esperam, passado tanto tempo, rodeados dos pomos mortais, radioactivos, fitados pelos olhos cegos do cão morto que jaz, ainda fiel, a seus pés? Podem ler os restantes contos em (https://triplov.com/devaneios-do-fim-destio/).
Vislumbres de um Sol d’Inverno
Saiu na revista TriploV um conjunto de narrativas curtas de minha autoria intitulada «Vislumbres de um Sol d’Inverno». Fica aqui o primeiro conto dessa colectânea:
O Poço
Aqui estou, olhando mais uma vez para o intenso negrume deste poço sem fundo. Fascina-me. Venho aqui muitas vezes para contemplar essa escuridão total que parece subir e contaminar o próprio ar, atraindo a luz, engolindo-a inteira, roubando a sua hialina claridade. Atiro pedrinhas só para as ver desaparecerem para nunca mais, pois nunca as ouvi embater no solo e tenho para mim que este poço não termina nunca. Entendamos-nos, houve um tempo, em que eu, imbuído de uma certa ingenuidade científica, tentei determinar com rigor qual a exacta profundidade deste abismo e todos os resultados que obtive foram inconclusivos. Primeiro, usei de meios rudimentares mas eficientes — um peso atado a um fio — mas não logrei encontrar meada suficientemente longa ainda que, juntando vários segmentos extensíssimos, tivesse obtido uma sonda com vários quilómetros. Depois, adquiri meios muito mais sofisticados que julgava eficazes, porém também eles se mostraram inúteis: ultra-sons e doppler, até um medidor laser que, em teoria pode determinar a distância da Terra à Lua, mas não a profundidade deste poço. Por fim desisti. Para quê este afã de obter uma certeza métrica quando o poço aí está, numa serena e quase imperturbável quietude. Ouviram bem, há, por vezes, movimento nessa escuridão de lonjura na forma de uns reflexos prateados que parecem ser escamas e um som de asas possantes e lentas, fazendo-me especular se o poço não é habitado e que essas criaturas enigmáticas têm tanta curiosidade para saber o que está cá fora como eu de conhecer quem nele vive. Se fosse mais novo e mais ágil e mais afoito talvez ainda pensasse em tentar uma expedição descendente, munido de escafandro, oxigénio e uma grua. Assim, resignei-me a vir para aqui contemplá-lo, pensar na vida e, de vez em quando, atirar as tais pedrinhas mudas para esta imensidão. No entanto, o poço chama-me, conheci-o toda a minha vida — pois descobri-o quando criança — e desde o primeiro momento tem exercido a sua sedução misteriosa, uma vertigem de abismo, promessa de emoção derradeira antes do fim, se fim houver, se chão tiver, se o fundo se puder alcançar e como, cada vez, com o passar dos anos, tenha menos a perder, sinto nos ossos e na víscera que breve chegará o momento do salto, do mergulho terminal nessa vastidão vertical e saberei, talvez, o que esconde, até onde vai ou, porventura, morrerei, de velho, em plena queda.
Leiam o conjunto completo em: https://triplov.com/vislumbres-de-um-sol-dinverno/
Teogonia Dois: 2. Um Deus Cansado
Tinha toda a eternidade, mas impacientava-se. Como? Um deus impaciente? Talvez por capricho, impulsividade e poder que ele o contrário à sua vontade nunca foi de admitir mas, mais do que isso, mesmo no que criasse era imperfeito. A modelação do barro genésico requer calma, a exacta e reflectida ponderação. Não basta dizer «faça-se» que a coisa fica feita. Quero dizer, feita ainda pode ficar, não será, contudo, coisa de que se orgulhe depois.
Era, pois, um deus imperfeito. Mas, não se iludam, era naquele panteão magnífico, um dos mais fortes e poderosos, temido pelos homens, e pelos outros deuses. Capaz de vergar a Natureza ao seu capricho, desafiava Fortuna e destino, impondo o que quisesse até mesmo às Parcas. Coitadas, cortavam o fio do que será quando ele mandava e não quando devia ser. E ele queria-o muitas vezes porque era, já o sabeis, impaciente como ninguém.
Mas era a descomunal potência genésica o seu principal atributo.
Criava animais exóticos e inverosímeis cuja função era desconhecida até mesmo para eles que, depois de experimentarem o que era viver, logo se deixavam morrer, após a angústia da perplexidade e sem deixar descendência. Eram rudes esses bichos. Não houvera tempo para detalhes na tamanha impaciência do deus e a bestialidade das criaturas , magníficas de pujança, além de suicidárias, tornava-as cruéis. Ainda bem que duravam pouco. De outro modo, seriam o terror dos homens e dos outros animais que assistiam, incrédulos, àquela proliferação de monstros.
Em contrapartida, quando saiam plantas das suas mãos criadoras, elas espalhavam-se por todo o lado de modo incontrolável, ameaçando sufocar, na sua exuberância, todo o mundo. Porém, mais uma vez, porque eram imperfeitamente formadas, logo feneciam às primeiras chuvas ou, então, era esta nossa divindade que se irritava e as apagava da face da terra enviando um grande cataclismo que não poupava ninguém.
O pior era que tais fracassos, ferindo-lhe o orgulho, o tornavam ainda mais impulsivo e impaciente, ao ponto de uma exasperação endemoninhada o dominar. E assim lhe crescia uma fúria, tão descontrolada que nenhuma hecatombe ou vingança, castigo ou generosidade lhe podiam aplacar o ódio.
17:00
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Diário Laboratório 2021: 15 /1/2021
Há, porém, outras fontes de bloqueio para o texto longo (sobretudo na ficção narrativa):
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1. O facto dos escritos-de-base estarem «perdidos» ou muito fragmentados, etc. 2. Existirem várias versões concorrentes, a ponto de o projecto se tornar incoerente. 3. Receio de falta de verosimilhança narrativa. 4. Tédio de trabalhar muito tempo no mesmo projecto. 5. Convicção na falta de originalidade da ideia-de-base.
Diário Laboratório 2021: 14/1/2021
O bloqueio fundo do tormento do fragmento provém do terror ínsito ao infinito da possibilidade.
12:00
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Teogonia Dois: 1. Um Deus Impaciente
Tinha toda a eternidade, mas impacientava-se. Como? Um deus impaciente? Talvez por capricho, impulsividade e poder que ele o contrário à sua vontade nunca foi de admitir mas, mais do que isso, mesmo no que criasse era imperfeito. A modelação do barro genésico requer calma, a exacta e reflectida ponderação. Não basta dizer «faça-se» que a coisa fica feita. Quero dizer, feita ainda pode ficar, não será, contudo, coisa de que se orgulhe depois.
Era, pois, um deus imperfeito. Mas, não se iludam, era naquele panteão magnífico, um dos mais fortes e poderosos, temido pelos homens, e pelos outros deuses. Capaz de vergar a Natureza ao seu capricho, desafiava Fortuna e destino, impondo o que quisesse até mesmo às Parcas. Coitadas, cortavam o fio do que será quando ele mandava e não quando devia ser. E ele queria-o muitas vezes porque era, já o sabeis, impaciente como ninguém.
Mas era a descomunal potência genésica o seu principal atributo.
Criava animais exóticos e inverosímeis cuja função era desconhecida até mesmo para eles que, depois de experimentarem o que era viver, logo se deixavam morrer, após a angústia da perplexidade e sem deixar descendência. Eram rudes esses bichos. Não houvera tempo para detalhes na tamanha impaciência do deus e a bestialidade das criaturas, magníficas de pujança, além de suicidárias, tornava-as cruéis. Ainda bem que duravam pouco. De outro modo, seriam o terror dos homens e dos outros animais que assistiam, incrédulos, àquela proliferação de monstros.
Em contrapartida, quando saiam plantas das suas mãos criadoras, elas espalhavam-se por todo o lado de modo incontrolável, ameaçando sufocar, na sua exuberância, todo o mundo. Porém, mais uma vez, porque eram imperfeitamente formadas, logo feneciam às primeiras chuvas ou, então, era esta nossa divindade que se irritava e as apagava da face da terra enviando um grande cataclismo que não poupava ninguém.
O pior era que tais fracassos, ferindo-lhe o orgulho, o tornavam ainda mais impulsivo e impaciente, ao ponto de uma exasperação endemoninhada o dominar. E assim lhe crescia uma fúria, tão descontrolada que nenhuma hecatombe ou vingança, castigo ou generosidade lhe podiam aplacar o ódio.
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